sobre as conversações entre Cuba e os EUA
Os princípios e objectivos<br>de Cuba são inegociáveis
Cuba não negoceia a sua organização política, económica e social, nem tem interesse em renunciar aos socialismo, afirmou a Embaixadora de Cuba em Portugal em entrevista ao Avante!. Franca, Johana Tablada de la Torre explicou a fase em que se encontram as conversações entre Cuba e os EUA. Os objectivos de Cuba são tão claros como o foram as respostas directas da representante diplomática que, sem simplificar o que está em causa nem menorizar as dificuldades, mostra um empenho e energia invulgares, aproximando-nos de um povo e de um País que resistiram mais de 50 anos a todas as agressões imperialistas. Chegaram, por isso, ao diálogo com os EUA «de pé, e não de joelhos», como nos sublinhou.
«A normalização de relações com bloqueio nós nunca aceitaremos»
A última ronda de diálogo entre os EUA e Cuba realizou-se no passado fim-de-semana (14 e 15 de Março). É a terceira depois do anúncio do restabelecimento das relações entre os dois países, a 17 de Dezembro. Já é possível fazer um balanço?
As reuniões foram fundamentalmente dedicadas a discutir como se fará o restabelecimento de relações, o que não é o mesmo que a sua normalização. Para compreender o que se está a passar, imaginemos que se trata de uma rua com várias vias paralelas. Em cada uma delas ocorrem processos simultâneos.
Os nossos companheiros Gerardo, António e Ramón já foram libertados. O seu regresso à pátria foi uma alegria tremenda, um alento para a nossa luta e a concretização de um objectivo pelo qual muito lutámos. Em poucos países, como em Portugal, foi mantida durante tanto tempo a exigência da libertação dos Cinco. Sei que o Avante! lhes era enviado com regularidade, dando-lhes força para resistir. O PCP foi incansável na exigência do regresso dos Cinco a Cuba, bem como o movimento sindical e muitos, muitos amigos de Cuba em Portugal. Só podemos agradecer.
Por outro lado, e regressando ao balanço que referias, discute-se a forma de concretizar a decisão dos presidentes de Cuba e dos EUA de restabelecerem relações diplomáticas. Ou seja, ainda nos encontramos na fase de abordar questões técnicas. Por exemplo, sobre os moldes em que serão abertas representações diplomáticas.
Outra etapa é considerar o desenvolvimento do terceiro anúncio de 17 de Dezembro: normalizar as relações entre ambos os países.
O início de conversações entre Cuba e os EUA foi desde sempre defendido por nós. Fidel, primeiro, e Raúl, depois, afirmaram-no inúmeras vezes, notando a necessidade de estabelecer uma convivência civilizada apesar das profundas divergências que mantemos; sublinhando os benefícios que tal teria para ambos os povos e o princípio do respeito mútuo, o fim da ingerência dos EUA nos assuntos internos de Cuba e o abandono, por parte dos norte-americanos, das medidas unilaterais de agressão que impuseram e agravaram durante anos.
Então quais são os obstáculos ao restabelecimento de relações?
A 17 de Dezembro, o presidente Barack Obama anunciou que Cuba seria retirada da lista de países terroristas. Perante uma declaração tão enfática, ninguém acreditaria que hoje, 20 de Março, a promessa ainda não tenha sido cumprida.
Os EUA sabem perfeitamente que Cuba não é nem nunca foi um país terrorista. A manutenção de Cuba na lista tinha como único propósito justificar uma política que o próprio presidente dos EUA veio dizer que está ultrapassada, e que se revelou um fracasso.
Há dois anos, o Congresso dos EUA, no âmbito do que afirmaram ser o combate ao terrorismo, decidiram embargar as contas bancárias de países, entidades ou organizações incluídas na lista. Se por alguma estúpida e absurda razão Cuba consta na lista dos EUA, a sua representação diplomática em território norte-americano fica com a conta bancária bloqueada. Causa perplexidade que a situação ainda não tenha sido resolvida.
Assim, não é aceitável abrir uma representação diplomática nos EUA sem reciprocidade, sem condições mínimas para o seu funcionamento.
Mas Barack Obama pode ultrapassar esse obstáculo sem consultar o Congresso?
Retirar Cuba da lista de países terroristas é uma decisão cem por cento executiva. A Obama basta-lhe provar que Cuba não cometeu qualquer acto terrorista nos últimos seis meses. É uma brincadeira! Os EUA sabem muitíssimo bem que Cuba nunca cometeu ou apoiou o terrorismo. Pelo contrário, foi vítima de actos terroristas organizados e financiados a partir de território norte-americano, onde grupos terroristas anticubanos gozam de e ampla liberdade de movimentos e acção.
Derrotar o bloqueio
A retirada de Cuba da lista de países terroristas, é portanto, uma condição?
Não é uma condição. É uma questão de justiça, de verdade, uma evidência. O presidente dos EUA tem poderes, não só nesse aspecto como também em relação ao bloqueio.
Mas, nesse caso, a decisão não é do Congresso?
A Barack Obama não faltam prerrogativas para retirar conteúdo prático ao bloqueio. Obama pode autorizar Cuba a usar o dólar nas transacções internacionais, pode acabar com as restrições férreas ao comércio de Cuba com o mundo, pode permitir que Cuba exporte para os EUA, pode autorizar que as instituições internacionais nas quais tem quotas concedam crédito a Cuba, pode acabar com as transmissões ilegais e agressivas de rádio e televisão contra Cuba. Estaríamos aqui a tarde toda, mas, em suma, Obama, se quiser, pode desarticular o bloqueio rapidamente.
Não são, portanto, rigorosas as notícias que realçam um alívio do bloqueio?
Foram feitos anúncios no sentido correcto e tomadas algumas, poucas, medidas positivas. É um facto. Mas o que é estruturante e lesivo dos povos de Cuba e dos EUA, e de outros, sobretudo latino-americanos, mantém-se.
Nas viagens para Cuba, Obama o que fez foi permitir que as 12 categorias que até estavam autorizadas – jornalistas, académicos, religiosas, etc. -, obtivessem licenças gerais em vez de licenças especiais. Isto é, um norte-americano ainda não pode ser turista em Cuba, continua válida a lei aprovada no Congresso dos EUA no ano 2000. Há uma expansão da possibilidade de viajar para Cuba, mas ainda não podemos falar da regularização dos fluxos turísticos.
Obama permitiu a exportação de materiais de construção desde que por cubanos não vinculados ao Estado; permitiu trocas comerciais na área das comunicações e telecomunicações. Mas é tudo muito restrito.
Cuba não condicionou o restabelecimento das relações com os EUA ao levantamento do bloqueio. Mas a normalização de relações mantendo o bloqueio nós nunca aceitaremos. Não é possível falar de relações normais com um país que mantém leis e medidas arbitrárias, injustas e violadoras de vários princípios e tratados internacionais.
Cuba também não tem nada para negociar neste aspecto. Não tem leis contra os EUA nem penalizações ao comercio feito com os EUA, os seus parceiros ou subsidiárias.
E quais são as condições apresentadas pelos EUA para a normalização das relações?
As nacionalizações, por exemplo. Cuba reconhece e sempre reconheceu o direito de compensação reclamado pelas empresas nacionalizadas após a revolução. Foram os EUA que, à época, rejeitaram acordar valores e formas de pagamento das indemnizações, contrariamente ao que fizeram Espanha, Alemanha, Suíça, e outros países.
Na altura, os norte-americanos acalentavam projectos e promoviam iniciativas, como a invasão da Baía dos Porcos e outras, de confrontação com Cuba, visando esmagar a revolução. Acreditavam que não valia a pena negociar uma parte quando podiam recuperar o todo.
Inegociável
Há pouco dizia que Cuba não tem nada a negociar. O que é que é inegociável para Cuba?
Cuba não negoceia a sua ordem constitucional, não tem disposição para alterar o seu sistema político e económico, nem interesse em renunciar ao socialismo. Nada disso está em causa e não são temas nas reuniões com os EUA. O futuro e o presente de Cuba, o caminho do nosso desenvolvimento são competências do povo cubano.
Há muita confusão quando se refere que está em discussão o respeito pelos direitos humanos. Cuba não aceita qualquer agenda norte-americana que, a coberto da dita defesa dos direitos humanos, pretenda abordar a nossa organização política, económica e social.
Os EUA fizeram e fazem com isso uma grande propaganda. Lançam campanhas e calúnias. Muito bem, se quiserem falar de direitos humanos, então também queremos vincar as nossas posições.
Cuba não aplica a pena de morte desde 2003. Nos EUA, todos os dias se fala na sua aplicação e, não raramente, contra inocentes ou incapacitados.
Depois, falam de direitos humanos introduzindo os que chamam de grupos da oposição em Cuba, quase todos criados e financiados pelos EUA. Grupos que não representam os interesses dos cubanos em Cuba, e cada vez menos representam os emigrantes que vivem nos EUA, os quais têm reiterado que estão cansados da retórica de uma agenda de política imposta e mantida porque é lucrativa para determinados sectores.
Os EUA deveriam concentrar-se e retirar lições das experiências de cooperação com Cuba. Existem inúmeras áreas de interesse comum que podem e devem ser desenvolvidas e aprofundadas, o que reforçaria a confiança mútua e contribuiria para um ambiente de desanuviamento geral.
Podemos e devemos trabalhar de forma séria como tem sido feito no combate ao narcotráfico, no resgate e salvamento no mar, na resposta conjunta e articulada a desastres ambientais. Nalguns casos, tudo começou com grandes obstáculos e incompreensões. A prática demonstra os resultados e estes indicam o caminho a seguir.
Podemos e devemos aprofundar, desde já e a par do processo de conversações em curso, a cooperação em matéria de correio postal, o intercâmbio cultural, a assistência médica a países de terceiro mundo, a investigação científica, e em tantas outras áreas nas quais há condições.
Reforçar a solidariedade
Cuba tem recebido a solidariedade dos povos de todo o mundo ao longo de décadas de resistência ao imperialismo. A abertura do processo de diálogo com os EUA muda alguma coisa na forma ou no conteúdo da expressão dessa solidariedade?
Sei que há preocupações por parte dos amigos de Cuba. Estejam tranquilos, não estão nem estarão em causa princípios ou objectivos estratégicos da nossa revolução.
A solidariedade tem muito para fazer, desde logo porque o bloqueio ainda não acabou. Nem imaginas a quantidade de pessoas que me saúdam pelo fim do bloqueio, a quem tenho de corrigir, recordando que, para já, o bloqueio prossegue intacto.
Nesse sentido, este é o momento para, em vez de aliviar a exigência do fim do bloqueio, colocá-la na ordem do dia, na luta ainda com mais força. Depois há um elemento que devemos reter: Obama diz que a táctica dos EUA contra Cuba falhou, mas o Departamento de Estado afirma que o objectivo se mantém. Isto é, ainda têm como propósito derrubar a revolução em Cuba.
O que eu posso garantir é que não o conseguiram «a mal», e tão pouco o vão conseguir «a bem».
Cuba não está só. Os EUA estão
O presidente Barack Obama reiterou, por estes dias, que pretende abrir uma embaixada em Cuba antes da Cimeira das Américas, agendada para 10 e 11 de Abril. Trata-se de propaganda, de táctica ou de ambas?
Essa é uma decisão que cabe ao poder soberano de Cuba.
Os EUA reclamam, para abertura de uma representação diplomática, total liberdade de movimentos para os seus diplomatas em Cuba. Mas não foi nem é Cuba que restringe a liberdade de movimentos dos diplomatas norte-americanos. É a conduta destes em Cuba que o determina.
Nenhum país aceitaria que os representantes de um país estrangeiro fossem agentes da subversão da ordem interna constitucional, que tivessem como prioridades a organização da contra-revolução. Tais práticas são totalmente ilegais nos EUA, onde qualquer diplomata que opere fundos para intervir nos assuntos internos do país ou é expulso ou preso.
Por outro lado, se os EUA pretendem chegar à Cimeira das Américas para dividir a América Latina, cometem grandes erros.
Primeiro, demonstram que nada apreenderam das transformações ocorridas na América Latina. Depois, porque desse modo enviam um sinal contraditório ao subcontinente, na medida em que, na sequência do anúncio, de 17 de Dezembro, todos julgámos que, restabelecendo as relações com Cuba, os EUA estariam não só a responder positivamente à exigência dos povos e países da América Latina mas a enterrar definitivamente a doutrina do «pátio das traseiras».
Insistir na confrontação é também prejudicial aos EUA. Significa cair em descrédito e contradizer o alegado objectivo de melhorar a relação com a região.
Os EUA ficam numa posição muito incómoda se insistirem em declarar a Venezuela uma ameaça à sua segurança. A América Latina não é a mesma dos anos 60, das ditaduras dos anos 70 e 80. Tão pouco é o subcontinente do neoliberalismo dos anos 90, da submissão às invasões e ingerências norte-americanas.
Que efeitos é que pode ter no destino da revolução bolivariana as conversações entre Cuba e os EUA. E vice versa?
O processo de diálogo entre Cuba e os EUA não condiciona nem altera a relação de Cuba com a Venezuela. Nunca a vamos subordinar às conversações e não é igualmente negociável a nossa solidariedade com a revolução bolivariana.
Aliás, logo no dia 17 de Dezembro, a declaração de Raúl Castro é muito clara nesse sentido, sublinhando que a política e os princípios de Cuba não dependem nem do início, nem da evolução nem do sucesso do processo de diálogo com os EUA.
Os EUA não podem querer dar uma «cenoura» a Cuba para apertar o «garrote» à Venezuela. É possível que haja sectores na sociedade norte-americana que façam a ligação entre o diálogo com Cuba e o desencadeamento da ofensiva contra a Venezuela.
Da nossa parte, não só dizemos que não terão sucesso, como reforçamos a nossa solidariedade com a Venezuela perante a agressão dos EUA a que está sujeita. E isso ir-se-á ver na próxima Cimeira das Américas.